Diversidade e Representatividade na Computação
Menos de 20% dos diplomas em ciência da computação e engenharia vão para mulheres. Ouço essa estatística desde que escolhi meu curso na faculdade. Quando cheguei pela primeira vez na sala de aula no Instituto de Matemática e Estatística da USP em 2018, a realidade era mais assustadora ainda: dos 60 calouros da ciência da computação, só 6 eram mulheres. A proporção incômoda levanta consigo a pergunta: por que as mulheres não estão escolhendo cursar computação?
Ada Lovelace, matemática considerada mãe da ciência da computação
Mulheres como cuidadoras emotivas, homens como seres lógicos
A explicação para a escassez feminina na computação pode recair na simplicidade de que as mulheres não querem estar ali, afinal a escolha de uma carreira parece quase que 100% dependente da estudante. Mas sabemos que nenhuma decisão depende apenas do indivíduo. Pais, professores, colegas… Todos, de alguma forma, acabam reforçando a ideia de que essa é uma área feita para homens.
Desde muito cedo, as meninas aprendem com os exemplos de dentro de casa e da mídia: a mulher é cuidadora nata, com alta sensibilidade, perfeita para exercer funções mais humanas e comunicativas ou de saúde pública (isso quando o estereótipo já não delega à mulher apenas a função de mãe e dona de casa). Já os meninos entendem que homens são seres racionais e altamente capazes de tomar decisões importantes por meio de análises numéricas, sem emoções no caminho.
Os papéis de gênero já começam a ser exercitados com brincadeiras de criança: meninas brincam de boneca e de casinha, meninos brincam de blocos de montar e de videogame. E é fácil culpar uma menina por escolher a boneca em vez de um Playstation, afinal, foi o que ela escolheu e insistiu persistentemente para ganhar de aniversário. Mas é muito difícil escapar desses estereótipos desde pequena, sempre há estranhamento e desaprovação das amigas da escola e dos pais. Há uma expectativa sendo colocada até mesmo no ócio das garotas desde que são muito novas.
O estereótipo de nerd genial
Personagens da série de televisão The Big Bang Theory que retratam muito bem o estereótipo de nerd genial
Para além disso, a ciência da computação carrega consigo um estereótipo muito explorado na mídia: o de “nerd genial”. O cara que vive de código, isolado, obcecado por tecnologia, que não se mistura. É uma imagem que até funciona para alguns, mas que exclui muitos outros, e quase sempre exclui as mulheres. Frequentemente, mulheres precisam vestir roupas (figurativamente e literalmente!) e inclinar seus gostos pessoais para aquilo que se encaixa na expectativa social do que é um programador.
E se uma mulher não é capaz de fazer isso, é muito fácil desenvolver síndrome do impostor. Quem não se encaixa acha que não é bom o suficiente. Nas palavras de uma graduanda em ciência da computação na universidade Carnegie Mellon, “Oh meu Deus, isso não é pra mim. (…) Eu não sonho em código como eles sonham”. E quando quase não há mulheres no ambiente, a sensação de não-pertencimento só aumenta. Quem entra precisa carregar o peso de provar o tempo inteiro que merece estar ali. Isso desgasta.
Na minha experiência pessoal, vi muitas mulheres assumindo papéis para além de suas zonas de conforto para reforçar sua existência no IME-USP. Algumas batalham para serem ouvidas em trabalhos em grupo, outras assumem uma postura mais grosseira para repelir qualquer desrespeito. Mas a maioria segue em silêncio, existindo, mas ainda com uma persistente impressão de que não deveria estar ali.
O choque na faculdade é grande, mas por que a maioria das mulheres nem está chegando ali? A realidade é que no ensino médio, meninas já carregam a sensação de que não têm “o dom” ou “a genialidade” necessários para seguir na computação. É justamente nessa fase que a escolha da carreira acontece. Se elas não encontram referências diferentes, se não enxergam que a área pode ser múltipla, criativa, colaborativa, elas simplesmente não entram. E o ciclo se repete: menos mulheres na área, mais força ganha o estereótipo, menos meninas se enxergam ali.
Por isso acho tão potente a ideia de diversificar os estereótipos. Não precisamos eliminar o nerd apaixonado por código, mas precisamos mostrar outras formas de existir dentro da computação. Cientistas criativos, colaborativos, engajados socialmente. Esse leque mais amplo pode fazer diferença. Prova disso: universidades como Carnegie Mellon e Harvey Mudd aumentaram de 10% para 40% a participação feminina em cinco anos ao mudar a forma de apresentar a área. Ou seja, mudar a imagem funciona.
Ada Lovelace e tantas outras
E quando olho para a história, a coisa fica ainda mais clara. A computação não nasceu masculina. Muito pelo contrário. Lá atrás, quando computadores eram usados para cálculos e tarefas consideradas repetitivas, quem estava ali eram mulheres. Ada Lovelace, Grace Hopper, tantas outras. Até os anos 1980, cursos de informática eram cheios de mulheres.
Imagine a minha surpresa ao ver a imagem acima, com a primeira turma de graduados no curso de Ciência da Computação do IME-USP, em 1974, na qual as mulheres eram a maioria. 40 anos depois, somos apenas 10%.
Foi quando a computação ganhou valor econômico que tudo mudou. A partir de 1984, os computadores pessoais começaram a ser divulgados como brinquedo masculino. Os videogames também. E de repente a lógica e a genialidade passaram a ser vistas como qualidades masculinas. A consequência que a gente vê até hoje: no Brasil, apenas 20% dos profissionais de TI são mulheres, segundo o IBGE.
Essa virada me deixa com uma sensação estranha: a área já foi feminina. Aí virou masculina. E isso prova que o perfil não é fixo. Ele muda. Se foi construído assim, também pode ser reconstruído.
Pra mim, o desafio central é justamente esse: quebrar a sensação de não-pertencimento. O estereótipo do nerd genial pode continuar existindo, mas não pode ser o único. Quando é o único, ele sufoca. Ele cria impostores. Ele afasta talentos. Diversificar a imagem do cientista da computação não é só questão de justiça – é questão de futuro da própria área. Quanto mais olhares diferentes, mais soluções criativas.
E volto ao ponto que me parece chave: o ensino médio. É ali que meninas decidem suas trajetórias. É ali que elas precisam ver que computação não é território exclusivo. Eu acredito de verdade que, se mudarmos a forma como apresentamos a área, podemos abrir portas que hoje parecem fechadas. Mais do que isso, podemos devolver à computação algo que ela já teve no início da sua história: as mulheres como protagonistas.
Referências
- Cultural stereotypes as gatekeepers: increasing girls’ interest in computer science and engineering by diversifying stereotypes. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4323745
- The Anatomy of Interest: Women in Undergraduate Computer Science. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/40004448
- Como as mulheres passaram de maioria a raridade nos cursos de informática. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/geral-43592581